Apresentação que escrevi para o livro Flor de Algodão, de Gilvânia Machado, cujo lançamento aconteceu no dia 5 de fevereiro de 2022, no Espaço Cultural Alberico Rodrigues, em São Paulo. Um livro sensível, de memórias, carinho e luta. 

“A palavra feita cinzel 

Esculpiu a carne de seda

Letra escarlate”

Gilvânia Machado

Dividido em cinco seções, a poeta nos conduz entre versos delicados, tal qual a própria Flor de Algodão, que dá nome ao livro. E este mesmo algodão, quando fiado e trançado, pode produzir um tecido de trama forte e densa, assim como é a poesia de Gilvânia Machado, delicada e forte, nas páginas que seguem. 

Percorremos os labirintos da memória repletos de ternura, nas lembranças dos avós, em meio às plantações de algodão “Havia momentos em que eu confundia os flocos de algodão / Com os cabelos branquinhos dos meus avós”. Evidencia o contraste com a rotina do trabalho no campo, desenhado, pela poeta, como um destino inevitável a seguir “os fios de sol” que “Desenhavam / A realidade crua / Nas linhas das minhas mãos”. Esta mesma linha do destino, também a linha da própria memória, “É o caminho perdido, / Minhas lonjuras, / A porteira, / O fio do novelo / Dos labirintos da memória / Embrenhando-me / De volta / Nos tempos idos”. A figura materna nos rememora um sagrado feminino simples e sábio, cujo conhecimento das letras, transmitido à poeta-criança, também lhe deu a capacidade de ver as belezas do mundo, “Ensinou-me as primeiras letras, / A apreciar o belo / E adoçar a vida”.  

Nos alumbramentos de Gilvânia Machado, a palavra liquefeita faz-se poesia e chuva e mar nos seus versos. A paisagem noturna mais uma vez compõe a metáfora para o sagrado feminino que se materializa na Lua e no próprio poema, “Quando não sangro / Sou superlua / Grávida de poesia”. E, ao nascer do dia, os versos ganham formas sensuais, sonoras e doces ao paladar: “Minha língua de sol / Lambe teu suor / Teus sussurros, doce melodia... / Deleito-me em teus abraços / Provo do mel dos teus beijos”.

A ausência também é tema entre as flores de algodão. Saindo da memória-infância, a poesia de Gilvânia vai além do sentimento de falta da pessoa amada, a palavra também faz-se ausência nas páginas brancas. A poeta, mulher ao mar, “Horas em silêncio na ânsia de fisgar palavras... / Um barulho qualquer e lá se vão / Palavras-peixes para o fundo (...)”. E o tempo que se estende ao vento, a dor da falta, o caos do mundo, transformam essa mulher-poeta em rocha à beira do abismo e, mesmo assim, capaz de permitir ser atravessada pela luz, compondo uma metáfora belíssima sobre a força e a delicadeza feminina. “Em meio ao caos, a dor, a falta... / Faço-me rochedo. / No alto dos penhascos, / A luz diáfana atravessa-me”.

A poeta cria a tessitura do verso e costura a palavra, fio a fio, “entre o sonho e o real”, na figura de Penélope, que durante o dia, aos olhos de todos, tecia o sudário de Laerte, pai de Ulisses, mas que, à noite, desfazia o tecido, a fim de ganhar tempo e não ser obrigada a casar novamente, “Entre linhas / E entrelinhas / Des_tecemos nós.”. Segue também a poeta, compondo e recompondo o texto, inventando e reinventando-se nas rendas do destino. 

A leitura flui, e a poeta pede à Poesia que nos salve dos males do mundo, numa inversão de papéis, em que a criadora não existe sem a salvação na criatura: “Ah! Que a Poesia nos ajude e nos salve das asperezas da vida”. Então, os poemas vão ganhando tons de protesto e crítica social, carregados de potência, remetem à luta das mulheres e a nossa capacidade de renascer numa mesma vida, mais fortes e mais corajosas: Pagu, Frida Kahlo, Camille Claudel, Maria Callas, Tarsila do Amaral, Marielle Franco, são algumas das personalidades inspiradoras na poesia de Gilvânia Machado, que não dispensa a crítica política ao Brasil de hoje, repudiando a postura e o descaso de muitos ante a morte de milhares nestes tempos pandêmicos: “Quase todos lavam as mãos. / Uns, com água e sabão. / Outros, com sangue. E daí?”

Aqui, apenas alguns fragmentos da poesia de Gilvânia Machado. Então, convido o leitor e a leitora a caminhar entre os campos de algodão e sentir o perfume verde e a brisa morna que vem do mar... 

Diana Pilatti

O livro pode ser adquirido diretamente com a autora nas redes sociais: Facebook e Instagram