No dia 18 de fevereiro de 2021, a Revista Gueto publicou seis poemas inéditos de minha autoria. Um projeto belíssimo com tema metalinguístico.
diário de uma palavra antiga
I
o poema já estava vivo
antes do primeiro bípede sobre a terra
o poema já era tempestade
dente-de-leão
líquido entre as guelras
o poema era o instante-navalha
perfurando silêncio
pouco antes do sol
descobrir-se horizonte
II
são relíquias do tempo
essas palavras que a memória silenciou
numa pedra qualquer
um nome
sobre a rocha vulcânica
meu corpo
e a poesia que se de.compõe
pregressa à rudeza do mundo
é a mesma poesia flórea
entre os dedos da minha ruína
Diana Pilatti
* * *
a casa
desprende-se
da parede mofada
a palavra-tempo
silenciosa
observa a poeira em nado lento
entre os filetes de luz
preguiçosos a entrar nos vãos da sala
cheia de histórias não contadas
cada cômodo dilata-se
submerso em ausências
“Houve muito amor nessa casa.”
sussurra contemplativo algum fantasma
estático
entre um espelho quebrado e um porta-retrato
mas à Palavra pouco importa o passado
Diana Pilatti
* * *
evidências
sob os pés da noite
a eternidade
e as horas sem sabor na boca —
pedras de gelo e tempo
a cidade calada
fecha seus olhos para os seres noturnos
igualmente mudos
na esquina
sob a marquise
atrás do muro
multidão
anônimos
na lentidão
homônima
e a fome devora o verbo nos olhos catatônicos
Diana Pilatti
* * *
paradoxo
o verão desliza morno entre os lençóis no varal
um frescor de mãe quebra o mormaço das horas a morrer no vão da tarde
a beleza hipnótica desse movimento — caleidoscópio perfumado
há realmente um lapso no tempo
entre o viés rosado do tecido que chicoteia
e o refrão de Chico que a mãe assovia
eu-menina
estática
em queda livre
neste paradoxo de verão
Diana Pilatti
* * *
saliva
a palavra dilui-se entre os versos
seiva
visgo
primeira chuva
na boca
o verso nunca dito espreita
entre as presas
desliza e escapa
pela ponta da língua
eu
na agonia das horas
desfaleço
descompasso
ela
a palavra-outra
na minha ausência
me sonha
Diana Pilatti
* * *
palavra invisível
anônima
uma palavra vagueia pelas ruas
cheira suor e urina
bastarda
uma palavra se esconde nos becos da noite
treme a cada estampido
estática
com a mão estendida
uma palavra invisível
me encara
acelerar o carro e virar a esquina
Diana Pilatti
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